Um dia chuvoso comum. Um policial vestido com uma jaqueta vintage e uma boina marrom está correndo por uma rua de São Petersburgo. Seu nome é Igor Grom, o protagonista do filme. Em um salto, ele vai parar em um caminhão cheio de ladrões com máscaras de hóquei, tenta detê-los, mas é atingido no peito. Corta para uma cena de funeral e parece que o filme acabou antes mesmo de começar. Isso seria certamente original, mas não renderia muitos frutos em termos de bilheteria. Bom basta dizer que nem tudo é o que parece.
O filme inteiro está repleto de cenas de ação como essas - emocionantes, cheias de valentia e, às vezes, engraçadas. Major Grom (cujo sobrenome significa ‘trovão’ em russo) para os criminosos seja ao volante de um caminhão de lixo ou com a ajuda de um vidro e seus punhos. As cenas de luta não são mero derramamento de sangue, mas integram a trama.
O antagonista, o Dr. Peste, e seus acólitos espalham tiros por todo o lugar - os indesejáveis são despachados rapidamente, carros queimam e explodem durante protestos de rua. Pode ser caricatural, mas é de ponta, como convém aos filmes de super-herói.
Major Grom não é o super-herói padrão de Hollywood que adquire poderes sobrenaturais por meio de um acidente estranho ou aparelhos sofisticados. Ele é apenas ágil e inteligente. O superpoder de Grom, se é que ele possui algum, é sua mentalidade russa do nunca-desista, que o livra de inúmeras dificuldades e situações complicadas.
Igor é solitário, uma espécie de Dr. House em uniforme de policial. No trabalho, as únicas pessoas com quem ele se dá bem são seu colega novato e o seu chefe, Prokopenko, que costuma perdoar todos os tipos de violações disciplinares, já que Grom é o único que realmente consegue pegar os criminosos.
Vale também destacar o personagem do vilão, cuja verdadeira identidade está envolta em mistério. Por um lado, o longa apresenta a principal fonte do mal como sendo os oligarcas corruptos que governam a cidade. Seus filhos atropelam pessoas nas travessias de pedestres sem sequer frear, na periferia da cidade os moradores se engasgam com o cheiro tóxico dos aterros e alguns ficam sem casa por conta da ação de banqueiros gananciosos.
Mas aí entra o antagonista principal, o Dr. Peste, que parece estar lutando contra a injustiça, declarando guerra aos corruptos. Só que ele faz isso da forma mais brutal - matando-os sem o devido processo, com suas famílias muitas vezes pegas no fogo cruzado. Apesar (ou por causa de) seus métodos, o Dr. Peste logo se torna um herói popular.
Em entrevista ao portal online DTF, o diretor Oleg Trofim ressaltou que o filme não tem motivação política. No entanto, o espectador atento notará paralelos entre o Dr. Peste e o oposicionista Aleksêi Naválni, que também faz uso ativo das redes sociais para interagir com seus apoiadores (esta alusão não é de forma alguma favorável para Naválni). Outro herói do filme é o talentoso programador Serguêi Razumovsky, criador da rede social anônima Vmeste, principal plataforma digital utilizada pelo Dr. Peste. Este é um evidente aceno para Pável Durov, fundador da rede social Vkontakte e do aplicativo de mensagens Telegram, que, por sinal, também começou sua carreira em São Petersburgo.
Dito isso, o filme ainda pode ser apreciado superficialmente, sem uma compreensão da política russa, porque, em essência, é um conto arquetípico de vingança nascido de um senso de justiça e dos limites permissíveis da justiça popular.
Ao contrário do recém-lançado ‘Silver Skates’, também disponível na Netflix, a São Petersburgo de ‘Major Grom’ é desoladora e sombria, que mais se parece uma cidade chuvosa à la Gotham City. De certo modo, mais perto da realidade - de fato, chove constantemente na capital do norte da Rússia. Mesmo assim, os marcos icônicos da cidade são mostrados em toda a sua glória: durante as perseguições pelas praças do Palácio e Sennaya, durante os diálogos nas margens do rio Nevá e de cima dos telhados, onde os personagens se sentam comendo shawarma, a comida de rua mais popular na cidade.
As vistas noturnas de São Petersburgo são especialmente impressionantes - cenas panorâmicas das ruas com a Catedral de Santo Isaac iluminada, pontes levadiças e bares cheios de gente (sim, sem lockdown). O Buddha Bar de São Petersburgo, retratado no filme como um cassino de luxo, é o pano de fundo de uma das principais cenas de luta.
Más notícias para os espectadores que não sabem russo: todas as músicas do filme são de artistas russos em língua nativa. A boa notícia é que as melodias são tão incomuns e assustadoras que não saber o idioma não é barreira alguma.
A trilha sonora é uma mistura louca de bandas indie de rap, hip-hop, pop, rock alternativo, música eletrônica e até folk. Entre as músicas está um antigo hit do grupo de rock Aquarium, uma música do desenho animado soviético Pequeno Guaxinim e uma versão mais lenta da geralmente intensa ‘Peremen’, de Viktor Tsoi, que toca nos créditos iniciais.
“Estávamos à procura de desconhecidos da cena underground com um som autêntico e profissional, mas ainda não vulgarizado pela sua própria popularidade. Foi importante encontrar a verdadeira música de São Petersburgo e descobrir novos talentos ousados ao longo desse processo, como aconteceu com o filme Brat 2 [Irmão 2]”, disse o diretor Oleg Trofimov sobre o processo de seleção da trilha sonora.
Desde o início, ‘Major Grom’ lembra vagamente alguns dos filmes de James Bond: um policial comum, em vez de um agente secreto; a atraente e atrevida jornalista Yulia Pchelkina como o interesse amoroso; o irônico coronel Fiódor Prokopenko no lugar de M, chefe da agência de inteligência britânica MI5. Até os créditos iniciais tem um quê de ‘Skyfall’.
Mas ‘Major Grom’ não poderia ser considerado um filme de ação médio, graças ao seu sabor russo, humor oportuno e personagens complexos, moralmente dúbios, que não podem ser qualificados como bons nem maus.
Assista ao filme na Netflix.
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