Tchékhov escreveu mais de 500 contos, que, em termos de profundidade e arte, não ficam atrás de grandes romances de outros escritores. Ele foi o primeiro a se ressaltar a vida cotidiana em suas histórias, ao invés de um drama exagerado.
As personagens de suas histórias frequentemente se dissolvem na rotina e nas circunstâncias, não exibindo aspirações próprias. Os contemporâneos de Tchékhov amaram essas inovações: ali eram retratadas pessoas reais. Tchékhov não as julgava ou denunciou, mas sim observava com imparcialidade.
Maksim Górki escreveu a Tchékhov que ninguém podia se equiparar a ele quando se tratava de escrever sobre coisas simples. "Depois de ler até seu conto mais insignificante, todo o resto parece grosseiro, escrito não com uma caneta, mas com um tronco."
Eis dez das leituras obrigatórias deste mestre do conto:
Ilustração de "O camaleão".
Dmítri Kardovski, 1910Um episódio menor ocorre na praça do mercado da cidade “N”: um cachorro morde o dedo do ourives Khriukin. Cria-se então um verdadeiro alvoroço e o inspetor de polícia Otchumelov chega para resolver o problema.
A princípio, o policial grita que o animal deve ser abatido e seu dono multado. Mas, quando ele descobre que o cachorro pertence a um general, sua opinião muda. De repente, Khriukin é o culpado por provocar o animal.
Depois, porém, se revela que o cachorro pode não pertencer ao general. Então deve-se abatê-lo? Mas é do irmão do general? Ai, caramba!
Este é um dos primeiros contos de Tchékhov, lido por todas as crianças em idade escolar, e uma crítica bem-humorada de como as atitudes das pessoas mudam, como a cor de um camaleão, dependendo de com quem estão lidando: um funcionário de alto escalão ou um zé ninguém.
A história está no volume "Contos e Novelas" de Tchékhov, da editora Raduga.
Ivan Bodganov. "Aprendiz", 1893.
Galeria TretiakovO menino Vanka, de nove anos, já é aprendiz de sapateiro e não tem pai nem mãe. Na véspera do Natal, quando todos vão à missa, ele pega uma folha de papel amassada e começa a escrever uma carta para o avô.
Nela, o menino conta como o sapateiro o trata mal, como ele come mal e é espancado por qualquer besteira e como os outros aprendizes zombam dele. O menino pede ao avô que o leve embora, prometendo ser obediente e ajudá-lo em tudo. “Quero fugir para a aldeia, mas não tenho botas, tenho medo do frio.”
Você acredita em milagres de Natal? Nem Tchékhov. Sem saber o endereço do avô, o menino escreve no envelope: “Para a aldeia do vovô” (em russo, “na derevniu deduchke”). Esta frase em russo tornou-se expressão corrente, significando um esforço infrutífero para fazer contato com alguém.
O conto faz parte da coletânea "Contos russos juvenis".
Ilustralção de "Kachtanka".
Dmítri Kardovski, 1903Um cachorrinho, cruzamento de dachshund com vira-lata, se perde depois que seu dono se embebeda e se afasta. Um estranho que passa tem pena dele, leva-o para casa, alimenta-o e decide ficar com ele, dando-lhe o nome de Kashtanka (em português, “castanha”).
Mas o novo dono acaba é um artista circense e inclui o cão em seu espetáculo. Durante sua estreia, alguém chama o cãozinho pelo antigo nome: seu ex-dono está na plateia!
Tchékhov humaniza o cão e seus pensamentos, dotando-o de sentimentos e um senso de lealdade que envergonha os humanos. Ele é apegado ao seu antigo dono e, mesmo tendo encontrado um lar mais amoroso, fica triste e lembra com carinho do tormento que sofreu nas mãos de seu filho.
Ele nunca vai trocar seu dono por calor, conforto e emoções circenses. Assim, quando o dono o chama pelo nome, corre imediatamente para ele.
“Kachtanka” foi publicado em uma edição separada da finada editora Cosac Naify e também em outras coletâneas do autor.
Rembrandt. A negação de São Pedro, 1660.
Rijksmuseum, AmsterdamQuando um estudante da Academia de Teologia está voltando para casa, começa a fazer um frio abrupto e um vento forte. De mau humor, o moço começa a imaginar como o vento deve ter soprado na época de Rurik e de Pedro, o Grande, e como sopra, há mil anos, tempo em que nada mudou: a mesma pobreza, a mesma saudade e a mesma ignorância reinam.
No caminho, o estudante encontra duas camponesas viúvas de sua aldeia: mãe e filha. Por tédio, ele começa a recontar a história bíblica da negação de Cristo por Pedro e sugere que deve ter sido uma noite igualmente fria e terrível. A mãe chora com suas palavras e o estudante percebe que ela realmente simpatiza com a angústia de Pedro, e sente a história, mesmo após tantos séculos…
No decorrer deste conto curto, o estudante passa por uma transformação incrível. A leitura do Evangelho e dos livros clericais é enfadonha para ele, e é somente conhecendo pessoas reais e entendendo suas experiências que a vida faz sentido para ele.
É possível ler “O estudante” on-line gratuitamente em tradução de Diego Moschkovich na revista da USP “Cadernos de Literatura em Tradução”.
Cena do filme "A casa de mezanino".
Iakov BazelIan/Yalta Film studio, 1960Este conto é narrado a partir do ponto de vista de um artista que leva uma vida ociosa, cujos únicos interesses são caminhar e beber chá. Certo dia, ele conhece uma viúva com duas filhas, que moram ao lado de uma casa com mezanino.
A irmã mais nova, jovem e sonhadora, admira as pinturas do artista e ele se apaixona por ela. A irmã mais velha é o oposto completo dela: é muito esforçada, trabalha em uma escola, ensina os filhos dos camponeses, tenta montar um centro médico para camponeses... Sua própria energia irrita o artista.
No conto, duas naturezas se chocam. De um lado, há uma pessoa ativa e de mente aberta que considera importante ajudar as pessoas, mesmo com pequenas coisas (algo em que o próprio Tchékhov acreditava: ele era médico e tratava camponeses doentes gratuitamente em sua propriedade). Do outro, há o tipo filósofo, que acredita ser necessária uma mudança global e que, até lá, nada vale a pena.
“A casa de mezanino” foi publicada em português na coletânea “O violino de Rothschild e outros contos”, da editora Veredas.
Cena de filme baseado em "Iônich".
Ióssif Kheifits/Lenfilm studio, 1966Um jovem médico, Dmítri Iônovitch (abreviado como “Iônitch”), chega a uma cidade da província com uma nobre missão: tratar camponeses quase de graça. Seu único entretenimento é visitar a família Turkin à noite. Eles fazem apresentações e sua filha Kátia toca piano. O médico se apaixona e a pede em casamento, mas ela o rejeita porque aspira a um "objetivo mais alto e brilhante".
Com o passar dos anos, o médico engorda e fica mais “pé no chão”. As atuações caseiras dos Turkin não lhe interessam mais, ao contrário do dinheiro e do conforto doméstico... Ele deixa de passear e começa a andar a cavalo (esse detalhe é muito importante para Tchékhov). O que acontecerá quando ele encontrar sua Kátia novamente?
Aqui, Tchékhov trata de seu tema favorito: como as pessoas sonhadoras se transformam em filisteus, como são consumidas pela vida cotidiana.
O conto está na coletânea “O assassinato e outras histórias”, da editora Cosac Naify.
Cena de "Homem num estojo".
Isidor Annenski/Belarusfilm studio, 1939Mesmo quando faz calor, Belikov usa casaco e carrega um guarda-chuva em um estojo. Na verdade, todos os seus bens têm um estojo. Ele esconde o rosto atrás do colarinho. Desconfiado e paranoico, ele anseia por ordem e limpeza em tudo. Somente em seu caixão ele tem uma expressão quase alegre no rosto: “Finalmente, colocaram-no em um estojo do qual ele nunca mais sairá”.
Tchékhov retrata uma figura solitária que procura se retirar do mundo e ficar em sua própria concha. Sua vida é invisível, tão vazia e sem sentido que ninguém derrama uma lágrima quando ele morre...
Em russo, a frase “homem num estojo” tornou-se uma expressão idiomática com conotação negativa, e se refere a pessoas que têm medo de se abrir para o mundo e perdem muitas oportunidades por nunca sairem de sua zona de conforto.
O conto se encontra na coletânea "A dama do cachorrinho e outras histórias", da editora 34.
Cena do filme para TV "Groselhas".
Leonid Pchelkin, Vsevolod Platov, Lidia IchimbaIeva, 1967O protagonista deste conto, um funcionário do governo, sonha em morar fora da cidade e comprar uma propriedade — onde certamente haverá um arbusto de groselha. Ele economiza até o último centavo e chega a se casar por dinheiro, mas sua sovinice leva sua mulher definhar e morrer. Anos depois, seu sonho finalmente se torna realidade: nosso herói se torna um cavalheiro do interior com uma propriedade, onde come groselhas com avidez.
A história está ligada a “O homem no estojo” através do narrador e do tema geral do egocentrismo excessivo, e constitui um importante relato sobre a natureza da felicidade humana.
Cena do filme "Queridinha".
Serguêi Kolossov/Mosfilm, 1966Olenka é tão mansa que todos a chamam de “duchetchka” (“queridinha”). Ela está totalmente absorta nos assuntos e preocupações de seus maridos (que morrem ou desaparecem em rápida sucessão): um empresário de teatro, um madeireiro, um veterinário... Ela não é só uma esposa dedicada, mas também uma assistente competente: até mesmo seu vocabulário muda dependendo dos interesses de seu cônjuge.
Esta é uma das obras mais importantes sobre o papel da mulher e a subserviência feminina. Na Rússia do final do século 19, as mulheres não eram mais vistas só como mães e esposas: a sociedade exigia que fossem educadas, trabalhassem e contribuíssem para a ordem social. Tchékhov contempla esse novo papel, sem dar um veredito.
O conto se encontra na coletânea "A dama do cachorrinho e outras histórias", da editora 34.
Duas pessoas casadas e que são infelizes na vida conjugal se encontram em férias na Crimeia e iniciam um romance. Quando chega a hora de partir, elas voltam para suas famílias, mas continuam ansiando uma pelo outra. Percebendo que encontraram o amor verdadeiro, começaram a se encontrar em segredo e a sonhar com um futuro juntos…
Esta história foi filmada várias vezes, oferecendo amplo espaço para interpretação. Tchékhov mais uma vez escreve não sobre indivíduos que buscam a felicidade e lutam por ela, mas sobre se render ao fluxo inexorável da vida.
O conto se encontra na coletânea "A dama do cachorrinho e outras histórias", da editora 34.
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