Por que os tsares russos eram considerados emissários de Deus?

Imperador russo estava mais próximo de Deus do que todos os demais, inclusive as autoridades religiosas.

Quando terroristas do grupo Narodnaia Volia (Vontade Nacional) planejaram o assassinato de Aleksandr 2º, eles contavam com a morte do tsar opressor para inspirar um levante nacional de proporções que o país inteiro se uniria em revolta. Mas, em vez disso, conseguiram exatamente o oposto: até os liberais lastimaram a morte do tsar, e o Narodnaia Volia – em vez de ser aclamado como um libertador – acabou sendo declarado um monstro absoluto. E não poderia ser diferente: aos olhos da maioria dos russos, o tsar não era passível que qualquer pecado ou transgressão, pois ele era o enviado de Deus na Terra.

Assassinato do tsar Aleksandr 2º em São Petersburgo, século 19

Hoje já se passaram mais de 100 anos desde que o último monarca russo abdicou do trono. Mas a memória coletiva russa de um governante como alguém cujo poder tem origem na lei ou na vontade popular – mas do próprio Deus – continua viva. É por isso que os russos estavam acostumados a culpar qualquer pessoa, menos o tsar, por seus problemas – dos boiardos aos ministros.

Mas, afinal, qual era a verdadeira relação entre o tsar e Deus? 

Filhos dos Céus

Todas as civilizações ao longo da história humana tiveram uma visão própria sobre o relacionamento entre Deus, ou deuses, e governantes. No Egito antigo, o faraó era considerado a personificação do deus Hórus na Terra. Já na China antiga, onde não havia uma religião monoteísta, o imperador era proclamado como o “filho dos céus”, e sua autoridade era percebida com humildade como se fosse destino. No Império Romano, o imperador fazia sacrifícios em nome de seu povo, pedindo aos deuses por misericórdia, fortuna, boa colheita e assim por diante; nesse aspecto, o governante assumia o papel de principal sacerdote de seu povo.

A estrutura cristã era diferente. Em Romanos 13:1, encontra-se o seguinte: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Deus”; e depois, em Provérbios 8:15: “Por mim reinam os reis, e os legisladores decretam leis justas”.

Com o advento do cristianismo, a ideologia mudou. Segundo a teóloga Elena Khaupa, para os cristãos tementes a Deus, o significado de autoridade era que os ajudava a se preparar para a vida eterna. “O imperador era responsável por seu povo pela salvação deles aos olhos de Deus”, explica. Essa concepção bizantina da autoridade do imperador foi absorvida e implementada pela antiga Rus. 

O tsar e o papa

'A coroação de Aleksandr 2º na Catedral da Dormição em Moscou', de M. Zichi

De que modo a autoridade espiritual de um governante bizantino – o mesma para o tsar russo – era diferente da do papa romano?

A Igreja Católica afirma que o papa é o sucessor do apóstolo Pedro, o primeiro apóstolo de Cristo. “Cuide de minhas ovelhas”, disse Cristo a Pedro (João 21:15).

A Igreja Ortodoxa Russa contesta essa ideia – para os ortodoxos russos, o Papa não governa a Igreja de Jesus Cristo nesta Terra, e merece apenas um status especial, mas longe de ser considerado uma autoridade absoluta.

Segundo os teólogos ortodoxos, “O Ungido”, ou o Messias, era um status que só poderia ter sido concedido a uma pessoa, e era Jesus (o próprio nome descendente da palavra grega para “o ungido”). O governante secular, no entanto, exerce o papel de enviado de Deus – uma diferença importante. Nesse papel, o imperador (ou tsar) é imbuído de poder absoluto, mas também de responsabilidade absoluta para com Deus. O resultado disso? O tsar deveria obedecer às leis de Deus, mas, quando se tratava das terrenas, ele poderia simplesmente escrevê-las a bel-prazer.

Parte dessa responsabilidade para com Deus significava afastar o país da crise sempre que sua fé estivesse em perigo – presidindo sobre assuntos religiosos e organizando reuniões, além de atuar como juiz em qualquer discussão e disputa entre os hierarcas da igreja. Por esse motivo, Ivan, o Terrível, que subiu ao poder em 1551, começou imediatamente a organizar o chamado Conselho dos Cem Capítulos, com o objetivo de pôr fim a todo uma série de desavenças apaziguar os conflitos na Igreja Russa. 

Casado com o império

A Crisma, ou coroação, do imperador Nikolai Aleksandrovitch na Catedral de Assunção, em Serov

Com o poder absoluto, no entanto, veio também a responsabilidade absoluta, e o governante sabia muito bem que sua vida seria dedicada a esse dever. A cerimônia de coroação russa era a proclamação visual dessa promessa.

“Coroação” é uma palavra ocidental, mas, em russo, o processo é, de fato, chamado de “crisma (unção) ao tsardom”, ou “ser casado com o tsardom” – diferença bastante importante e que se perde na tradução ao falar da Rússia.

A unção do tsar era símbolo desse “casamento” com o tsarismo e seu povo. Como todos os casamentos são feitos no céu, o tsar também é casado com o seu tsarismo, e não pode fugir da mais sagrada das uniões. É por isso que, após a abdicação de Nicolai 2º , muitos russos simplesmente se recusaram a acreditar que o tsar poderia ter renunciado – esse tipo de atitude era considerada impensável.

 Santo Sínodo, em 1911

Outro aspecto a ser observado é que o tsar – que era maior que a Igreja – tinha a palavra final sobre a autoridade eclesiástica em certos assuntos ou mesmo sobre sua propriedade. Qualquer intromissão do tsar nos assuntos da Igreja não era, portanto, considerada ilegal. Foi assim que Pedro, o Grande, aboliu o Patriarcado sem problemas e instituiu o Santo Sínodo em 1721. Quem iria detê-lo? Constantinopla deu a bênção. O tsar russo era, na prática, o chefe da Igreja Ortodoxa, e sua palavra era mais forte que a do patriarcado. A situação do papa, por outro lado, era bem diferente: nenhum rei jamais poderia se sobrepor a ele em questões religiosas.

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